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Mudanças climáticas podem reduzir população de cervos-do-pantanal

16 SET 2016 • POR Redação • 09h38
Os maiores exemplares chegam a pesar 140 quilos. - Walfrido Tomas

Pesquisas avaliam os impactos das mudanças climáticas sobre espécies indicadoras, como os cervos-do-pantanal. O cenário mais recente traçado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indica redução de até 30% na quantidade média de chuvas para a Bacia do Rio Paraguai até 2100. Este cenário pode, segundo as projeções, levar a uma redução drástica da população de cervos no Pantanal, de até 75%. Os estudos foram desenvolvidos pela Embrapa Pantanal em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

O modelo estatístico adotado, que busca predizer o que pode acontecer com a espécie indicadora (o cervo), sugere que existe 60% de probabilidade de a população ser reduzida a um quarto (25%) do que existe hoje até 2100. O mesmo modelo revela que há 70% de probabilidade de a população cair pela metade até aquele ano. Ou seja, as chances de o cervo ser afetado no Pantanal pelas mudanças climáticas globais são substanciais.

As projeções foram feitas com base no cenário mais crítico de mudanças climáticas para o Pantanal proposto pelos pesquisadores José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden); Lincoln Alves, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe); Roger Torres, da Universidade Federal de Itajubá/MG (Unifei), publicado na revista Climate Research em 2016.

O estudo faz parte da dissertação de mestrado de Guellity Marcel Fonseca Pereira, que foi orientado pelo professor Marcelo Bordignon e co-orientado pelo pesquisador Walfrido Tomás, do Laboratório de Vida Selvagem da Embrapa Pantanal (MS). O cervo-do-pantanal se encontra na lista oficial de animais ameaçados de extinção no Brasil.

Os dados que deram origem ao modelo estatístico foram coletados em 1991, 1992, 1993, 1998, 2000, 2001, 2002 e 2004 por meio de levantamentos aéreos cobrindo todo o Pantanal, buscando conhecer o tamanho e a tendência das populações de grandes vertebrados que usam áreas abertas. Houve contagem de cervos, veados campeiros, capivaras, jacarés e ninhos ativos de tuiuiús (ave-símbolo do Pantanal).

"É um dos raros casos de monitoramento de abundância de grandes animais feito por longo prazo no Brasil", conta Tomás. Segundo ele, a ideia é entender como a abundância da população de animais responde à variação das inundações no Pantanal.

A pesquisa

O grupo da Embrapa Pantanal já havia utilizado os dados iniciais em publicações envolvendo cervos, jacarés e veados. Em 2010, os pesquisadores publicaram artigo sobre a quantidade e variação de ninhos de tuiuiú em relação às inundações, demonstrando que em anos mais secos, com cheias menores, o número de ninhos diminui substancialmente. Com os dados de inundações de 1900 a 2004, e utilizando um modelo estatístico, concluíram que a quantidade de ninhos variou de 200 a 20 mil ao longo de um século. O número maior de ninhos ativos foi obtido nos anos de 1990, quando grandes cheias ocorreram no Pantanal, enquanto que, na década de 1960, com uma longa sequência de anos muito secos, foi estimado que apenas algumas centenas de ninhos foram ativos na região.

Na dissertação, foi seguido o mesmo caminho. "Queríamos entender como duas espécies responderiam às variações do ciclo de inundação: o cervo-do-pantanal e o veado-campeiro. Um respondeu claramente à intensidade das cheias, outro não", comenta Tomás.

Pereira afirma que essas duas espécies de cervídeos são interessantes objetos de estudo não apenas por estarem listadas como ameaçadas de extinção, mas também por terem área de vida e habitat distintos, o que permite dar mais subsídios para os esforços de conservação no Pantanal. Enquanto o veado-campeiro utiliza áreas abertas e tem certa plasticidade em sua dieta, o cervo-do-pantanal é dependente de áreas úmidas e se alimenta principalmente de plantas aquáticas.

Para o cervo, o modelo que melhor explica o tamanho da população diante das inundações é baseado no comportamento das enchentes nos últimos três anos em relação às estimativas populacionais. "Para que as populações sejam afetadas é preciso um período relativamente longo de submissão às condições ambientais desfavoráveis, já que não é esperada diminuição imediata das populações após cheias muito intensas ou secas extremas. Não há catástrofe e demora um tempo para que esses eventos realmente afetem as populações de forma detectável pelos pesquisadores", explica Tomás.

Nesse sentido, segundo ele, entender como as alterações nas inundações no Pantanal influenciam as densidades dessas espécies é importante para que se possa estabelecer planos e estratégias de conservação mais robustos, que incluam a gestão e a conservação de recursos hídricos e bacias hidrográficas em uma escala mais ampla, não apenas local.

"O que mais me chamou atenção nesse estudo são as indicações de que a população de cervos foi drasticamente reduzida em períodos muito secos, como ao longo da década de 1960, mas se recuperou consideravelmente quando o Pantanal entrou em um período de cheias mais intensas, entre as décadas de 1970 e meados da década de 1990", disse Pereira. Isso indica uma resiliência da espécie, ou seja, sua capacidade de recuperação quando as condições são favoráveis por um período mais longo. Entretanto, é preciso considerar que talvez isso não tivesse ocorrido se houvesse uma pressão de caça sobre a espécie na região.

A população

Entre 1991 e 1993, períodos de cheias maiores, a estimativa de população era de 40 mil a 45 mil indivíduos. De acordo com as estimativas do modelo desenvolvido, entre 1903 e 2004 a população variou de 4.500 a 31 mil. A média do século foi uma população de cerca de 20 mil cervos no Pantanal. A população atual será estimada por um novo levantamento a ser conduzido pela equipe no ano que vem, com apoio de um projeto financiado pela Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundect).

De acordo com Pereira, como os pantaneiros não costumam caçar essa espécie, a prioridade das políticas públicas deve centrar-se em proteger hábitats, especialmente os inundáveis. Para o cervo, isso significa garantir que o principal fator ecológico que define o Pantanal precisa ser mantido, ou seja, o pulso de cheias e sua intensidade.

Nesse sentido, o cervo pode ser considerado uma espécie guarda-chuva, no jargão conservacionista, já que existem muitas outras espécies que dependem das mesmas condições para se manter. Entre elas, pode-se citar centenas de aves aquáticas, aves migratórias e espécies de peixes do Pantanal. É sabido que os alevinos dos peixes, após a desova, deslocam-se para as áreas inundadas para o primeiro estágio de crescimento. Se essa área é reduzida e o tempo de duração das inundações é alterado, toda a produtividade da pesca no Pantanal poderá ficar comprometida.

Reduzindo os riscos

Para mitigar essa situação, seria necessário interromper ações de degradação e recuperar áreas degradadas, em especial aquelas diretamente relacionadas com a quantidade e a qualidade da água. "É preciso tentar amortecer a redução de água nas inundações devido às mudanças climáticas globais, por meio da conservação de mananciais e nascentes, não drenando ambientes úmidos, conservando as florestas e evitando erosões. O pior cenário é a sinergia entre impactos das intervenções humanas no ecossistema e os efeitos das mudanças climáticas", recomenda o pesquisador da Embrapa Pantanal.

Pereira afirma que remediar os efeitos das mudanças climáticas não é tarefa fácil, já que não pode ser feita uma alteração de rumo do que já está acontecendo em um curto espaço de tempo e nem em escala regional ou mesmo nacional. "Mas podemos reduzir os eventuais impactos das mudanças climáticas nas populações de cervo se focarmos em garantir a qualidade e a disponibilidade de hábitat para esta espécie", diz.

É preciso considerar também os impactos que podem surgir da intervenção nos rios para favorecer a navegação (alterações no canal, remoção de rochas e retificação de curvas), bem como a retenção de água em reservatórios de hidrelétricas na bacia do rio Paraguai. "Isso pode afetar todo o comportamento hidrológico na planície de inundação e, somando-se seus efeitos com aquelas advindos de mudanças climáticas, temos o desastre perfeito para a economia e para a biodiversidade. Uma tragédia anunciada", alerta Tomás.

O cervo-do-pantanal

Os maiores exemplares de cervo-do-pantanal chegam a medir 1,91 m de comprimento e 1,27 m de altura, podendo pesar até 140 quilos. É o maior cervídeo da América do Sul e o segundo mamífero terrestre brasileiro em massa corporal. Sua pelagem é marrom-avermelhada e os machos possuem galhada com três ou mais pontas de cada lado. O focinho, a cauda e as extremidades dos membros são negros. As orelhas, em formato arredondado e grande, apresentam longos pelos brancos no interior.

A presença do cervo-do-pantanal ocorre em áreas abertas inundáveis, onde se alimenta de plantas aquáticas, gramíneas e leguminosas. Em geral, tem comportamento tranquilo, o que o torna vulnerável aos caçadores. Quando se sente ameaçado, pode atacar. A fêmea ataca com as patas dianteiras, levantando o tronco.

É uma das poucas espécies de mamíferos que migram, seguindo as inundações. São solitários, mas podem formar pequenos grupos, em geral compostos por um macho, a fêmea e seu filhote. Está na Lista Brasileira de Espécies Ameaçadas, bem como no livro vermelho da União Internacional de Conservação da Natureza. No Pantanal, vive a maior população conhecida da espécie, a qual já está extinta no Uruguai e encontra-se em situação crítica no Paraguai e na Argentina, bem como em diversos estados brasileiros, como Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul.